terça-feira, 3 de julho de 2012


A COBRA

E afinal de contas, a culpa do pecado foi de quem? Da serpente, que tentou Eva? De Eva, que mordeu a maçã e a ofereceu a Adão? Ou de Adão, que sucumbiu à tentação e também comeu do fruto proibido?
Se voltarmos um pouquinho atrás. Bom, pensando bem, não é tão pouquinho assim. Então, voltemos beeeeeem atrás, quando nossos antepassados não conheciam o conceito de pecado, nem sequer de Diabo. Quando o homem vivia da terra e pertencia a ela. Quando a mulher era sagrada e o homem via nela a porta para a eternidade.
Deus deveria, nesse contexto, ser mulher uma. Não havia, para eles, outra explicação. Da mulher, nascia a promessa de manutenção da tribo e da espécie.
Então, tanto o corpo da mulher (seios, vulva) era sagrado, quanto o ato sexual, que era o responsável pelo nascimento de uma nova criança.
A cobra surgiu neste contexto, como mais um dos inúmeros símbolos relacionados à mulher e à Deusa. Este animal misterioso, que ao mesmo tempo demonstra um grande poder de regeneração, quando muda sua pele, também mostra um grande poder de matar.
Inevitável foi a comparação. E a mulher começou a ser representada como a serpente sagrada. Duas deusas que demonstram perfeitamente essa primeira correlação foram Asherah e Lilith. Ambas tinham entre seus símbolos a cobra.
Asherah era esposa de Javé. Mesmo antes de haver qualquer código ou livro sagrado escrito, quando os cananeus ainda se lembravam da sacralidade da terra e da mulher, Asherah era a grande mãe da terra, a senhora de tudo. Ela era a responsável por criar tudo o que existia e a cobra aparece em todas as suas representações. Ela era adorada aos pés de uma árvore (há quem diga que fosse uma macieira) no topo de uma montanha.
Lilith veio depois e era a primeira esposa de Adão. Isso mesmo, esposa de Adão, mesmo antes de Javé criar Eva de sua costela. Aliás, Javé criou Eva em compaixão a Adão, que como ele, também perdeu sua esposa.
Lilith revoltou-se contra Adão, que queria subjuga-la, e fugiu, reivindicando sua liberdade, sua soberania e sua sexualidade sagrada. Ela também era representada por uma serpente.
Ainda outros ícones podem ser citados, demonstrando a importância simbólica desse animal sagrado.
Os desenhos egípcios que chegaram até nós representam de forma reincidente grandes faraós, deuses e deusas portando sobre sua fronte uma cobra naja, pronta para dar o bote. Ela era chamada de uraeus, um símbolo de eternidade, renascimento.
Quem não se recorda também do famoso Ouroboros grego: uma cobra mordendo o próprio rabo – símbolo de eternidade.
E ainda para ilustrar mais um pouco, lembro-lhes também a nossa kundalini. Segundo os hindus, existe uma força imensa adormecida dentro de todos nós, na região do períneo, entre o órgão genital e o ânus, mais especificamente em um ponto chamado muladhara. Este ponto não é responsável somente por nossa libido, mas também por nos manter vivos e de onde nasce nossa coragem e força de vontade.
De acordo com essa filosofia, a kundalini estaria enrolada em nosso muladhara, assim como uma serpente adormecida, e somente por meio de um desenvolvimento espiritual muito grande, ela despertaria e subiria por toda a coluna vertebral da pessoa, levando à iluminação e à capacidade de utilizar todas as suas faculdades.
Mas porque ela adormeceu? O que aconteceu com a sacralidade desse símbolo?
Em dado momento da humanidade, o homem subjugou a mulher e disse à ela que sua sacralidade não mais existia. Ele a convenceu de que ela era inferior, impura e deveria se submeter a seus desígnios. E então, esse mesmo homem, passou a acreditar que tudo que nascia não mais viria do útero fértil de uma grande Deusa, mas da mente de um Deus sisudo e solitário. E então, a partir daí, também o sexo passou a ser impuro, sujo, pois não mais dele surgia a vida. A mulher era apenas um instrumento desse Deus supremo, vingativo e sectário.
E a serpente?
A serpente fugiu, como Lilith, e passou a ser vista como um demônio, que deveria ser perseguido e exterminado. Foi humilhada e pisada, assim como aquela que aparece sob os pés de Maria. Maria que por sinal não é uma Deusa, mas uma mulher, que possuída pelo Espírito Santo, engravidou em nome de Deus, sendo ainda virgem, sem ter tido o direito do amor e do sexo, e sem poder assumir o poder que tem de ser a verdadeira fonte da vida.
Ou desapareceu, foi esquecida, como Asherah, que nunca mais foi lembrada por aqueles que passaram a adorar Javé.
Ou então, ela adormeceu, e assim permanece em todos nós. Adormeceu exatamente naquele lugar em nós que mais pulsa, que mais nos impele a viver e a conquistar: o nosso sexo. E ela permanecerá ali, adormecida, nos privando de exercermos o máximo de nossa capacidade, a não ser que possamos nos libertar do jugo patriarcal do pecado, e aceitar nossa sexualidade, nosso prazer, nosso corpo, nossa carne.
Então, a culpa do pecado foi de quem? Da serpente?

Da serpente do falo, que tem medo da serpente que há na mulher.



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