A COBRA
E afinal de contas, a culpa do
pecado foi de quem? Da serpente, que tentou Eva? De Eva, que mordeu a maçã e a
ofereceu a Adão? Ou de Adão, que sucumbiu à tentação e também comeu do fruto
proibido?
Se voltarmos um pouquinho atrás.
Bom, pensando bem, não é tão pouquinho assim. Então, voltemos beeeeeem atrás,
quando nossos antepassados não conheciam o conceito de pecado, nem sequer de
Diabo. Quando o homem vivia da terra e pertencia a ela. Quando a mulher era
sagrada e o homem via nela a porta para a eternidade.
Deus deveria, nesse contexto, ser
mulher uma. Não havia, para eles, outra explicação. Da mulher, nascia a
promessa de manutenção da tribo e da espécie.
Então, tanto o corpo da mulher
(seios, vulva) era sagrado, quanto o ato sexual, que era o responsável pelo
nascimento de uma nova criança.
A cobra surgiu neste contexto,
como mais um dos inúmeros símbolos relacionados à mulher e à Deusa. Este animal
misterioso, que ao mesmo tempo demonstra um grande poder de regeneração, quando
muda sua pele, também mostra um grande poder de matar.
Inevitável foi a comparação. E a
mulher começou a ser representada como a serpente sagrada. Duas deusas que
demonstram perfeitamente essa primeira correlação foram Asherah e Lilith. Ambas
tinham entre seus símbolos a cobra.
Asherah era esposa de Javé. Mesmo
antes de haver qualquer código ou livro sagrado escrito, quando os cananeus
ainda se lembravam da sacralidade da terra e da mulher, Asherah era a grande
mãe da terra, a senhora de tudo. Ela era a responsável por criar tudo o que
existia e a cobra aparece em todas as suas representações. Ela era adorada aos
pés de uma árvore (há quem diga que fosse uma macieira) no topo de uma
montanha.
Lilith veio depois e era a
primeira esposa de Adão. Isso mesmo, esposa de Adão, mesmo antes de Javé criar
Eva de sua costela. Aliás, Javé criou Eva em compaixão a Adão, que como ele,
também perdeu sua esposa.
Lilith revoltou-se contra Adão, que
queria subjuga-la, e fugiu, reivindicando sua liberdade, sua soberania e sua
sexualidade sagrada. Ela também era representada por uma serpente.
Ainda outros ícones podem ser
citados, demonstrando a importância simbólica desse animal sagrado.
Os desenhos egípcios que chegaram
até nós representam de forma reincidente grandes faraós, deuses e deusas
portando sobre sua fronte uma cobra naja, pronta para dar o bote. Ela era
chamada de uraeus, um símbolo de eternidade, renascimento.
Quem não se recorda também do
famoso Ouroboros grego: uma cobra mordendo o próprio rabo – símbolo de eternidade.
E ainda para ilustrar mais um
pouco, lembro-lhes também a nossa kundalini. Segundo os hindus, existe uma
força imensa adormecida dentro de todos nós, na região do períneo, entre o órgão
genital e o ânus, mais especificamente em um ponto chamado muladhara. Este
ponto não é responsável somente por nossa libido, mas também por nos manter
vivos e de onde nasce nossa coragem e força de vontade.
De acordo com essa filosofia, a
kundalini estaria enrolada em nosso muladhara, assim como uma serpente
adormecida, e somente por meio de um desenvolvimento espiritual muito grande,
ela despertaria e subiria por toda a coluna vertebral da pessoa, levando à
iluminação e à capacidade de utilizar todas as suas faculdades.
Mas porque ela adormeceu? O que
aconteceu com a sacralidade desse símbolo?
Em dado momento da humanidade, o
homem subjugou a mulher e disse à ela que sua sacralidade não mais existia. Ele
a convenceu de que ela era inferior, impura e deveria se submeter a seus
desígnios. E então, esse mesmo homem, passou a acreditar que tudo que nascia
não mais viria do útero fértil de uma grande Deusa, mas da mente de um Deus
sisudo e solitário. E então, a partir daí, também o sexo passou a ser impuro,
sujo, pois não mais dele surgia a vida. A mulher era apenas um instrumento
desse Deus supremo, vingativo e sectário.
E a serpente?
A serpente fugiu, como Lilith, e passou
a ser vista como um demônio, que deveria ser perseguido e exterminado. Foi
humilhada e pisada, assim como aquela que aparece sob os pés de Maria. Maria
que por sinal não é uma Deusa, mas uma mulher, que possuída pelo Espírito
Santo, engravidou em nome de Deus, sendo ainda virgem, sem ter tido o direito
do amor e do sexo, e sem poder assumir o poder que tem de ser a verdadeira
fonte da vida.
Ou desapareceu, foi esquecida,
como Asherah, que nunca mais foi lembrada por aqueles que passaram a adorar
Javé.
Ou então, ela adormeceu, e assim
permanece em todos nós. Adormeceu exatamente naquele lugar em nós que mais
pulsa, que mais nos impele a viver e a conquistar: o nosso sexo. E ela
permanecerá ali, adormecida, nos privando de exercermos o máximo de nossa
capacidade, a não ser que possamos nos libertar do jugo patriarcal do pecado, e
aceitar nossa sexualidade, nosso prazer, nosso corpo, nossa carne.
Então, a culpa do pecado foi de
quem? Da serpente?
Da serpente do falo, que tem medo
da serpente que há na mulher.
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